De ofício
Política(gem) de remoções na Polícia Federal favorece ''peixes'' »
Por: Josias Fernandes Alves
Para muitos servidores da Polícia Federal, a leitura diária do boletim interno de serviço tornou-se um hábito quase masoquista, que provoca sentimentos de injustiça, desmotivação, indignação, frustração e desalento. Em especial, para os que trabalham em áreas de fronteira e regiões inóspitas ou em localidades distantes de onde gostariam de viver, por razões profissionais, pessoais ou familiares.
O principal motivo da revolta é a falta de transparência e de critérios objetivos nas remoções ex officio. Por esta modalidade, prevista em lei, o servidor só poderia ser removido no “interesse da Administração", de acordo a conveniência do serviço e oportunidade.
Mas o problema mais grave das remoções de ofício na Polícia Federal é que se tornaram uma forma de burlar o processo seletivo interno de remoção, instituído no âmbito do órgão em 2003, que introduziu a modalidade de remoção a pedido, para outra localidade, independente do interesse da Administração.
A primeira instrução normativa que regulamentou o concurso interno de remoções estabeleceu critérios objetivos, impessoais e isonômicos, como tempo de serviço, pontuação diferenciada para localidades de fronteira e regiões inóspitas, claros de lotação, dentre outros.
Até então, a política de movimentação de pessoal na PF se pautava pelo improviso e pelas indicações e convites pessoais ou pelo conceito subjetivo que os interessados gozavam perante suas chefias imediatas. Eram decisivos também os vínculos pessoais com “os amigos dos amigos” de quem detinha poder decisório. Em regra, a preferência era daqueles que tinham os chamados “contatos em Brasília” ou acesso a dirigentes. Imperava “a lei da selva”.
Por ironia, o objetivo inicial do processo seletivo interno, de moralizar a política de lotação e remoção de servidores, acabou sendo subvertido justamente por supostas razões de “interesse público”, que deveriam orientar todas as remoções ex officio.
A “conveniência do serviço” foi o fundamento da remoção ex officio de 217 servidores, numa única tacada, denominada “I Recrutamento Policial de 2010”. Por coincidência, a remoção em massa foi publicada no boletim de serviço de 12/02/10, na véspera do lançamento do primeiro concurso de remoção daquele ano. Após seis meses, em 30/08/10, foi publicada uma nova leva de 227 remoções de ofício.
Por óbvio, as vagas preenchidas pelos servidores removidos por interesse da Administração não foram oferecidas no concurso de remoção. Servidores lotados em regiões distantes dos grandes centros não conseguiram a tão sonhada transferência para localidades para as quais foram contemplados aqueles que não precisaram participar do processo seletivo.
Além de frustrar as expectativas de centenas de servidores, os recrutamentos e remoções ex officio, sem motivação, atropelam princípios constitucionais que devem reger a administração pública. E ainda implicam gastos para a União, com o pagamento de ajuda de custo, indenização de transporte de mobiliário, bagagem e passagens para deslocamento, para o servidor removido de ofício para outra localidade, o que é previsto na legislação.
Em outubro do ano passado, o Ministério Público Federal (MPF) em Alagoas propôs ação civil pública, para tentar impedir novas remoções de ofício na PF, salvo com a justificativa do interesse público e os critérios objetivos para a escolha do servidor a ser removido.
Na análise de cinco procedimentos administrativos de remoção de servidores da PF, o MPF constatou que em todos não havia a motivação exigida por lei para as remoções. De acordo com o procurador da República Rodrigo Tenório, autor da ação, os documentos examinados limitavam-se a justificar o valor da ajuda de custo paga aos servidores. “Não há uma única linha acerca da necessidade da remoção para o local de destino, da demanda de serviço nesse lugar, nem da qualificação do servidor que demonstrasse que ele poderia atendê-la”, afirmou.
Para quem conhece os bastidores da política de remoções na PF, a constatação do membro do MPF/AL não foi novidade: “O mais grave é que, da forma como está sendo feita, sem fundamentação alguma, a remoção de ofício cria verdadeira casta de servidores, em detrimento dos que não têm as bençãos da cúpula da administração da PF. Alguns integrantes do quadro funcional, com o auxílio da direção, são alocados nos melhores lugares sem participar do concurso de remoção a pedido, e ainda são pagos por isso”, explicou.
As diferenças de pesos e medidas na política de remoção na PF ocorrem até em casos de servidores ocupantes da mesma carreira, removidos para a mesma unidade, no mesmo período e em condições análogas. Foi o que ocorreu na Delegacia da PF em Divinópolis/MG, inaugurada em janeiro de 2010. Dentre os 20 policiais removidos para a nova unidade, apenas quatro receberam a ajuda de custa e as despesas com a mudança e deslocamento.
Os demais tiveram que abrir mão do benefício, como pré-requisito para a remoção. A estranha exigência de renúncia expressa da ajuda está prevista na instrução normativa vigente. A falta de isonomia no tratamento resultou em ações judiciais dos servidores contra a União, que pleiteiam a nulidade do ato administrativo, bem como o pagamento da indenização. Certamente, têm grande chance de êxito na reparação do prejuízo que foi imposto.
Após outra ação, proposta pelo MPF/SP, que visava anular as remoções ex officio dos recrutamentos, a PF chegou a assinar um termo de ajustamento de conduta, se comprometendo a realizar, prioritariamente, remoções sem ônus financeiro, através de concurso de remoção a pedido, antes do oferecimento de vagas aos novos policiais.
Mas as remoções de ofício continuaram. De acordo com a investigação feita pelo MPF/AL, em 2010, foram mais de quinhentas remoções de ofício. Em 2011, até outubro, foram mais 134 remoções. De lá para cá, ocorreram outras dezenas de remoções de ofício. Apenas nas cinco remoções analisadas, ocorridas em junho do ano passado, foram gastos cerca de R$ 225 mil.
No ano passado, noutra ação civil pública o MPF/DF obteve liminar, que suspendeu uma verdadeira excrescência jurídica, que impedia a participação em concursos de remoção, recrutamentos para cargos ou hipóteses similares, de servidores cuja lotação na unidade atual esteja definida por decisão judicial não transitada em julgado. Na decisão, o juiz classificou a proibição de inadmissível, irracional e inconstitucional.
Noutra ação promovida pelo Sindicato dos Policias Federais no Estado de Pernambuco contra a União, a Justiça Federal chegou a deferir medida de antecipação dos efeitos da tutela, determinando que a PF não removesse seus servidores na modalidade ex officio, impondo-lhe a realização de concurso de remoção para suprir os claros de lotação porventura existentes, até a decisão da lide. Em março deste ano, a Advocacia Geral da União (AGU) obteve uma liminar contra a decisão.
O desembargador acatou o recurso apresentado pela AGU, elaborado com base nas informações prestadas pelos gestores da PF, em virtude do suposto dano que a proibição de remoções de ofício poderia representar pela “inviabilização da implantação das políticas de segurança pública, impedindo que áreas mais sensíveis do Território Nacional recebam reforço de servidores, sabidamente escassos em região de fronteira e em superintendências tidas como menos atraentes” (sic). Contudo, não se tem notícias de quantos, quando, onde e quais os servidores foram removidos de ofício para suprir essa escassez.
Dentre outras razões acatadas pela Justiça Federal de Pernambuco, foi alegado que as remoções estariam sendo apreciadas de forma coletiva, por um colegiado de diretores da PF, à luz de critérios discricionários, com objetivo de "diminuir o impacto sofrido nas unidades de origem e, ao mesmo tempo, atender à necessidade de pessoal das unidades de destino, não inviabilizando a movimentação dos policiais para as unidades de maior carência (sic)."
Outro argumento foi que alguns setores considerados “sensíveis” na PF, como a Diretoria de Inteligência Policial, por exemplo, necessitariam de servidores com um “perfil diferenciado”. Nesse aspecto, as remoções de ofício seriam uma “ação estratégica”, para atender as demandas específicas de cada setor, o que seria analisado pela “cúpula da instituição”.
Quem conhece como se dá as remoções na PF, na prática, bem sabe que as nobres razões de interesse público elencadas pela AGU não passam de boa peça de argumentação jurídica, distante da realidade cotidiana. A maioria das remoções de ofício não resistiria à análise criteriosa quanto à conveniência e justificativa, como a que foi feita em apenas cinco casos, pelo MPF/AL.
A instrução normativa em vigor, de 2009, estabelece que a remoção de ofício, no interesse da Administração, ocorrerá nos casos de criação ou extinção de unidades, suprimento de efetivo para as Unidades Centrais ou Descentralizadas, desde que haja claro de lotação e nomeação ou exoneração de cargo de chefia, quando envolver diferentes unidades.
Em nome do poder discricionário e da conveniência e interesse do serviço, a norma costuma ser ignorada. Há dezenas de casos de remoções efetivadas para unidades onde não havia claro de lotação, de acordo com o quadro divulgado pela própria corporação. Ou cujas vagas foram abertas de repente, sem publicidade.
Com raras exceções justificáveis, servidores sem qualquer especialização compatível com a natureza do serviço são indicados, para as unidades centrais da PF em Brasília, ou para as superintendências, nas capitais. Nestes casos, um Q.I. elevado é importante. Mas um C.I. (contato imediato) ou uma B.I. (bajulação intensiva) também são fatores decisivos.
Não se tem notícia de movimentação de pessoal em sentido inverso, ainda que as unidades descentralizadas, em regiões de fronteira, também careçam de servidores com qualificações especializadas.
A moralização das remoções de ofício na PF não seria difícil, mas depende da vontade política dos dirigentes do órgão. Aliás, sugestões foram encaminhadas para melhorar a minuta – aberta à consulta - da instrução normativa que disciplina as remoções, que deve entrar em vigor nos próximos dias. Uma das propostas é que o preenchimento de vagas através de remoção de ofício só ocorra após a prévia realização de concurso de remoção ou recrutamento, com critérios objetivos, caso não haja interessados.
Como exceção à regra, as remoções para preenchimento de cargos de chefias e em unidades operacionais e técnicas, que notadamente dependem de formação profissional ou acadêmica específicas, tais como grupos de operações táticas, de aviação operacional, setores técnico-científicos, seriam definidas através de recrutamentos, também mediante critérios objetivos de seleção e recrutamento.
Ainda não se sabe se as propostas foram aproveitadas pelos gestores da PF na redação da nova norma sobre remoções. O que poucos duvidam é que se não forem definidas regras objetivas para remoções de ofício – baseadas na efetiva motivação de conveniência e interesse do serviço - a política de remoções na PF, a despeito dos concursos internos, vai continuar o que sempre foi: incompatível com os princípios da moralidade, eficiência, impessoalidade e publicidade, dentre outros.
“E a pescaria vai continuar”, no bem humorado comentário de um policial federal, em alusão aos chamados na gíria como “peixes”, aqueles servidores que sempre são “fisgados” pelos que decidem as remoções.
Josias Fernandes Alves, Agente de Polícia Federal, foi lotado em região de fronteira, entre 1996 e 2001. Formado em Jornalismo e Direito, é Diretor de Comunicação da FENAPEF e conselheiro do SINPEF/MG. josiasfernandes@hotmail.com
Fonte: Agência Fenapef
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